Comunicação

Você já se perguntou por que os líquidos usados nas simulações de propagandas de absorventes são azuis e não vermelhos cor de sangue? Será que existe uma convenção imaginária que induz todos os publicitários a sempre usarem azul e não a cor real? Será que esse paradigma é algo natural ou será que há um interesse por trás da manutenção dessa visão envergonhada acerca da menstruação? A marca britânica de absorventes Bodyform decidiu ser a primeira do seu país (quiçá do mundo) a confrontar essa predisposição com a campanha #bloodnormal.

Nela, a partir de imagens muito bem elaboradas, a marca confronta o tabu que envolve a menstruação e utiliza um líquido vermelho ao invés de azul. Tem ainda uma cena com fio de sangue escorrendo de uma perna feminina durante o banho. Não é a primeira vez que a marca busca gerar essa reflexão: ano passado também lançou um vídeo com mulheres praticando esportes extremos como escalada e boxe, sujas de sangue, suor e lama. Geralmente a publicidade cria e se adapta bem aos tabus, tão bem que é difícil identificá-los. Quando uma empresa decide se expor a fim de gerar uma reflexão genuína, devemos depositar no mínimo alguma atenção ao tema.

O filósofo Michel Foucault (1926 – 1984) apresentou em 1970, durante sua aula inaugural no Collége de Franc e posteriormente no livro Ordem do Discurso, a análise da relação entre os discursos do nosso cotidiano e o poder. Segundo ele, é controlando os nossos discursos que as instituições mantêm o poder. Foucault apresenta a hipótese de que, em toda sociedade, a produção de discursos é controlada com o objetivo de: exorcizar os poderes e os perigos; diminuir a força de eventos incontroláveis; esconder as reais forças que materializam a constituição social. Os conceitos de Foucault serão aqui apresentados muito brevemente. Existem outros sistemas e classificações. A teoria não abrange as novas mídias digitais, onde os discursos não tem o mesmo controle. Entretanto, a mídia de massa e os grandes veículos são ainda os maiores influenciadores da opinião pública e controlam a produção de discursos com interesses bem específicos.

Segundo o autor, são excluídos aqueles discursos que vão contra a ordem vigente, sendo que esse controle ocorre em duas esferas: interna e externa. Na primeira, há os “procedimentos de controle e delimitação do discurso”, que é quando o discurso pode ser dito mas esbarra em processos internos de controle, que são três:

Comentário: tudo o que falamos já foi dito uma ou outra vez, porém de forma diferente, com outras palavras. Nós sempre estamos remetendo a outros discursos. Pode até parecer uma coisa nova, mas sempre vai haver uma repetição.

Autor: basicamente remete à limitação que o discurso tem de acordo com individualidade do autor. O autor nesse caso não é necessariamente quem produziu o discurso, pode ser alguém que reproduz um recorte desse discurso, por exemplo.

Disciplina: essa refere-se às regras e verdades preestabelecidas de cada área. Foucault usa o exemplo de Mendel, criador da teoria da hereditariedade, que não foi aceita inicialmente por chocar-se com as concepções biológicas vigentes. Obviamente, essas regras podem mudar de acordo com o tempo, o lugar, mas é difícil isso acontecer pois quem domina as regras pode controlar quem participa do discurso.

Existe, porém, as formas de controle externos que o autor chama de “sistemas de exclusão”. São principalmente nelas que se encaixam os tabus discursivos inerentes à publicidade. Também ocorrem em três sistemas:

Vontade de verdade: ter um discurso tido como verdade é também ter poder. Por isso todo mundo quer produzir um discurso aceito. Nem precisa ser de fato verdadeiro, se passar por tal já é suficiente. Sempre houve em nossa cultura uma dicotomia entre certo e errado, que foi responsável pela vontade de saber.

Oposição entre razão e loucura: geralmente aquele discurso que vai de encontro às demais interdições se classifica aqui. Segundo Foucault, “louco é aquele cujo discurso não circula como o dos outros”. É um discurso desmoralizado, sem crédito, assumindo em casos específicos uma áurea profética.

Interdições:é onde o discurso publicitário é mais afetado. Dentre as várias possíveis classificações desse sistema, Foucault especifica três:

– A palavra ou objeto: é aquele termo, imagem ou assunto inconveniente ou mesmo proibido. Tal como o sangue na propaganda de absorvente, sexualidade ou política, por exemplo.

– Ritual: há discursos que só podem ser proferidos em eventos ou circunstâncias específicas.

– Direito privilegiado: é o discurso que somente pode ser proferido por indivíduo(s) específico(s).

Essas barreiras influenciam na potência e abrangência do discurso. São elas que sustentam os tabus. Esses por sua vez prejudicam em grande escala a discussão necessária sobre as relações humanas (ou mesmo as próprias relações). Por que muitas mulheres têm repulsa do próprio sangue menstrual mas toleram o sangue oriundo de ferimentos? O estranhamento acerca do cheiro, da cor e da textura desse tipo de sangue indica que as mulheres o identificam como algo alheio ao seu corpo e isso influencia na forma como lidam com ele cotidianamente. O silêncio que cerca o assunto pode prejudicar a saúde das mulheres. Muitas vezes, e principalmente em países de renda média e baixa, não se falam com meninas sobre menstruação antes que aconteça pela primeira vez.

Trocar mais informações e experiências, por exemplo, evitaria a confusão entre um sangramento saudável e um sangramento anormal. O tabu é uma negligência e quem tem voz deveria falar sobre isso. É como ressalta o “pai da publicidade” David Ogilvy: “a publicidade se justifica quando utilizada em favor do interesse público — é uma ferramenta poderosa demais para ser usada somente para fins comerciais.”. Num mercado tão competitivo, parece difícil às vezes deixar de lado o interesse nas vendas, mas é uma responsabilidade que requer profissionais utópicos e realmente bem intencionados.

Vídeo da campanha:

Referências:

www.nexojornal.com.br/expresso/2017/10/19/Por-que-uma-marca-de-absorvente-decidiu-mostrar-‘sangue’-em-seus-anúncios

http://ideiasedesaforos.blogspot.com.br/2007/09/ordem-do-discurso.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_do_Discurso